Terra das águas
Na contramão da tendência mundial para este século, o Brasil dispõe de fartura de água doce. Mas o consumo inconsequente e a falta de infraestrutura ameaçam jogar pelo ralo esse presente da natureza.
Por Flávio de Carvalho Serpa
Foto de Fábio Colombini
Foto de Fábio Colombini
O horizonte de braços de rios e ilhas de um dos maiores arquipélagos fluviais do mundo, Anavilhanas, no Rio Negro: tudo é superlativo na Amazônia, berço das águas brasileiras.
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Em 2009, uma equipe multinacional formada por cientistas da Petrobras, pesquisadores ingleses e holandeses da Universidade de Amsterdã perfurou um poço com 4,5 mil metros de profundidade na foz do rio Amazonas. Eles não estavam à procura de petróleo, mas capitaneavam uma espécie de viagem no tempo. Sua busca era pelo mais primitivo leito do rio, enterrado por milhões de anos de deposição de sedimentos. Mais tarde, a equipe anunciou a descoberta em uma revista especializada: de acordo com as análises dos estratos, o rio mais caudaloso do planeta nasceu há 12 milhões de anos.
A generosa bacia Amazônica é o exemplo mais contundente de uma nação pródiga em rios, lagos e aquíferos que, juntos, concentram mais de 11% de toda a água doce disponível da Terra. Não há fartura semelhante em outros cantos do globo. Considerando toda essa abundância, cada brasileiro teria à disposição, na teoria, 34 milhões de litros por ano. É uma quantidade fabulosa, 17 vezes maior do que a ONU considera uma média confortável de consumo.
Nas próximas décadas, nas quais o recurso tende a tornar-se escasso em todo o mundo, as questões mais importantes irão orbitar em torno do uso inteligente dessa água. "Mesmo a nossa fartura é aparente, já que os maiores rios estão distantes milhares de quilômetros dos principais aglomerados urbanos", analisa Wanderley da Silva Paganini, superintendente de gestão ambiental da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp). "É preciso entender que se trata de um bem finito. Daí a importância de utilizar o mínimo necessário e não poluir as fontes naturais", completa ele.
O consumo consciente, todavia, está longe de ser uma realidade no Brasil. Por dia, o brasileiro utiliza 132 litros de água em banhos, bebidas, cozinha, lavagem de carros, calçadas e pisos, além da rega de jardins e plantações de tamanhos variados. Com isso, quase 30% da água tratada nas cidades escorre pelos vazamentos nas ruas e no subsolo. "Na região metropolitana de São Paulo, no verão deste ano, por exemplo, tivemos picos de consumo de 84 mil litros por segundo, mais de 30% além do normal. Esse tipo de exagero poderia ser evitado sem dificuldade", diz Paganini.
O privilégio da abundância não se aplica a todos no Brasil. A distribuição nacional do recurso, tal qual a de renda, é perversa. Em torno de 80% da água concentra-se na Amazônia, onde vivem apenas 5% dos brasileiros, muitos dos quais diante de um terrível paradoxo: ainda que cercados de rios, os moradores do interior da Região Norte reconhecem na água potável um artigo de luxo. "Hoje, 19 milhões de pessoas, 10% da população, não têm acesso à água tratada. É muita gente", aponta Paganini. Em função disso e da pouca noção de cuidados básicos com higiene, o líquido que deveria matar a sede e garantir a saúde transmite doenças.
Já no semiárido nordestino, 18 milhões de pessoas sobrevivem em uma zona tomada por um dos maiores índices de evaporação do mundo. Ao longo do ano, ocorrem períodos de chuva, mas o solo e o clima árido não favorecem a formação de fontes ou rios volumosos. A pouca água acumulada nos poços rasos não recebe os cuidados básicos e acaba por se tornar, também, propagadora de enfermidades.
As dissonâncias naturais na geografia dos recursos hídricos do Brasil foram, em muitos aspectos, acentuadas por processos históricos. A mecanização da agricultura e a industrialização acelerada fizeram com que a maioria dos habitantes deixasse o campo, criando problemas relacionados à urbanização e, com isso, afetando as torrentes. O trecho paulistano do rio Tietê é a vítima mais evidente desse fenômeno: o corpo meândrico foi transformado em um canal reto; as várzeas inundáveis, tomadas de construções e asfalto impermeável; e o leito, convertido em esgoto. O resultado caótico desse desrespeito ao curso d'água são as trágicas enchentes exibidas pelos noticiários a cada verão.
O processo que levou a esse cenário teve início nos anos 1940, época na qual, pela primeira vez, um censo nacional dividiu a população em rural e urbana. Nas cidades, havia, então, uma minoria de 31% dos habitantes. Em 1964, as duas partes já eram iguais. O atual relatório do Programa Hábitat, das Nações Unidas, revela que 52,3 milhões de brasileiros (cerca de 27% do total) vivem em favelas, locais em que o abastecimento de água é, muitas vezes, fruto de ligações clandestinas isentas de tratamento.
O mesmo estudo prevê que até 2050 a porcentagem da população em centros urbanos deve ultrapassar os 93%. Serão nada menos que 238 milhões de pessoas morando nas cidades do país. Essa concentração vai criar pontos críticos no fornecimento de água em muitas metrópoles e nos centros industriais. "Em breve, ela deixará de ser um recurso tido como abundante e de baixo custo para se transformar em um produto valioso e escasso", aposta o pesquisador Sílvio Ferraz, do Departamento de Ciências Florestais da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo.
Os dados da Pesquisa Nacional de Amostras a Domicílio de 2009, divulgados em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), servem como indicadores das dificuldades que estão por vir. Apesar dos progressos nos serviços de fornecimento de água potável por rede geral encanada (84% das residências do país), apenas 59% das moradias pesquisadas possuem acesso a algum tipo de tratamento.
Em certos estados, a situação é especialmente crítica. Até o fim de 2009, o Amapá tinha o menor porcentual de domicílios com ligação à rede geral de esgoto (aquela que, em tese, transporta os dejetos para estações de tratamento, impedindo que sejam despejados in natura em rios e córregos), com apenas 1,3% de unidades com acesso à rede ou com fossas sépticas conectadas a um desaguadouro geral. No Piauí e no Pará, a situação não é muito diferente.
A ausência de um sistema abrangente de coleta e tratamento de esgoto resulta em corpos d'água poluídos em zonas urbanas. Em decorrência disso, há um aumento na exploração de fontes subterrâneas. Vários dos aquíferos estão perto da exaustão e do colapso geológico. Acumulados ao longo de milhões de anos, em lento processo de recarga pelas chuvas, esses reservatórios engolem toda sorte de porcaria produzida pela ocupação humana na superfície, que vai contaminar o líquido potável no subsolo.
Um estudo publicado em setembro de 2010 pelo Serviço Geológico dos Estados Unidos mostra que vários dos aquíferos americanos já absorveram até dez vezes mais nitrogênio e fósforo - substâncias comuns nos fertilizantes usados na agricultura intensiva -, bem acima dos níveis considerados saudáveis. O mesmo risco corre o Brasil: boa parte do aquífero Guarani fica sob o fértil cinturão agrícola do Sul e do Sudeste. Outro vilão é a irrigação, responsável por retirar grandes volumes de água da natureza. Na velocidade em que o subsolo está sendo sugado, os aquíferos não conseguem mais recarga adequada.
O processo que levou a esse cenário teve início nos anos 1940, época na qual, pela primeira vez, um censo nacional dividiu a população em rural e urbana. Nas cidades, havia, então, uma minoria de 31% dos habitantes. Em 1964, as duas partes já eram iguais. O atual relatório do Programa Hábitat, das Nações Unidas, revela que 52,3 milhões de brasileiros (cerca de 27% do total) vivem em favelas, locais em que o abastecimento de água é, muitas vezes, fruto de ligações clandestinas isentas de tratamento.
O mesmo estudo prevê que até 2050 a porcentagem da população em centros urbanos deve ultrapassar os 93%. Serão nada menos que 238 milhões de pessoas morando nas cidades do país. Essa concentração vai criar pontos críticos no fornecimento de água em muitas metrópoles e nos centros industriais. "Em breve, ela deixará de ser um recurso tido como abundante e de baixo custo para se transformar em um produto valioso e escasso", aposta o pesquisador Sílvio Ferraz, do Departamento de Ciências Florestais da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo.
Os dados da Pesquisa Nacional de Amostras a Domicílio de 2009, divulgados em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), servem como indicadores das dificuldades que estão por vir. Apesar dos progressos nos serviços de fornecimento de água potável por rede geral encanada (84% das residências do país), apenas 59% das moradias pesquisadas possuem acesso a algum tipo de tratamento.
Em certos estados, a situação é especialmente crítica. Até o fim de 2009, o Amapá tinha o menor porcentual de domicílios com ligação à rede geral de esgoto (aquela que, em tese, transporta os dejetos para estações de tratamento, impedindo que sejam despejados in natura em rios e córregos), com apenas 1,3% de unidades com acesso à rede ou com fossas sépticas conectadas a um desaguadouro geral. No Piauí e no Pará, a situação não é muito diferente.
A ausência de um sistema abrangente de coleta e tratamento de esgoto resulta em corpos d'água poluídos em zonas urbanas. Em decorrência disso, há um aumento na exploração de fontes subterrâneas. Vários dos aquíferos estão perto da exaustão e do colapso geológico. Acumulados ao longo de milhões de anos, em lento processo de recarga pelas chuvas, esses reservatórios engolem toda sorte de porcaria produzida pela ocupação humana na superfície, que vai contaminar o líquido potável no subsolo.
Um estudo publicado em setembro de 2010 pelo Serviço Geológico dos Estados Unidos mostra que vários dos aquíferos americanos já absorveram até dez vezes mais nitrogênio e fósforo - substâncias comuns nos fertilizantes usados na agricultura intensiva -, bem acima dos níveis considerados saudáveis. O mesmo risco corre o Brasil: boa parte do aquífero Guarani fica sob o fértil cinturão agrícola do Sul e do Sudeste. Outro vilão é a irrigação, responsável por retirar grandes volumes de água da natureza. Na velocidade em que o subsolo está sendo sugado, os aquíferos não conseguem mais recarga adequada.
Cálculos da Universidade de Utrecht e do Instituto de Pesquisas Deltares, na Holanda, publicados na revista Geophysical Research Letters no fim de 2010, comprovaram outra face danosa da retirada excessiva dos depósitos subterrâneos. Essa água passou a fazer parte do ciclo hidrológico mundial e contribuiu para a elevação anual no nível do mar a uma taxa de 0,8 milímetro (um quarto do total, que é de 3,1 milímetros). Tendo em vista que o oceano responde pela maior parte da evaporação enviada à atmosfera, os efeitos resultaram em um aumento das precipitações e, de acordo com a região, das chances de inundações. "A tragédia provocada pelo terremoto de 1985 na Cidade do México foi maximizada pelas modificações do solo decorrentes da exaustão do aqüífero", exemplifica o biólogo Aristides Almeida Rocha, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
A mesma equipe de pesquisadores calculou que, de 1960 a 2009, a captação de águas subterrâneas em todo o planeta mais que dobrou, passando de 312 quilômetros cúbicos anuais para 744. No Brasil, o aumento proporcional foi ainda maior. No mesmo período, a exploração de poços artesianos subiu de apenas 7 quilômetros cúbicos para 58 - e a tendência é continuar a crescer. "Isso pode ter implicações no abastecimento humano no futuro", alerta o climatologista Carlos Nobre, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A boa notícia é que, no caso brasileiro, o volume é pequeno se comparado às reservas desse "oceano" escondido. As áreas favoráveis à absorção e acumulação, quase sempre rochas cristalinas sedimentares formadas há milhões de anos, ocupam a maior parte do território do país, e 90% delas têm regime de chuvas abundantes, entre mil e 3 mil milímetros por ano.
Tal condição geográfica permite que mais da metade da população se abasteça de fontes subterrâneas. Poços, nascentes e cacimbas compõem a base do fornecimento de água em 76% dos municípios do estado de São Paulo, por exemplo. No Paraná e no Rio Grande do Sul, essa porcentagem chega a 90%. Na Grande São Paulo, o maior centro urbano do país, 95% de indústrias, hospitais, hotéis e condomínios de luxo possuem poços artesianos.
Também na Amazônia, a quantidade de água sob a superfície impressiona. Não bastasse a bacia ter em seu andar térreo o maior rio do planeta, seu subsolo guarda, talvez, um dos maiores reservatórios do mundo, o aquífero Alter do Chão, espalhado pelos estados do Amazonas, Pará e Amapá. Informações preliminares dão conta de 86 mil quilômetros cúbicos, volume garantido pelo solo arenoso que favorece a infiltração da chuva. Mas os estudos irão avançar e é possível que Alter do Chão seja ainda maior.
Distante dali, a bacia sedimentar do Paraná estoca em seu subsolo 33 mil quilômetros cúbicos de água no aquífero Guarani, outra grande reserva brasileira. Compartilhado com Argentina, Paraguai e Uruguai, espalha-se por 1,2 milhão de quilômetros quadrados, com águas em média a 250 metros de profundidade, embebidas em areia e rochas sedimentares entre camadas de rochas vulcânicas, em um sanduíche natural que preserva essa riqueza desde a era Mesozoica, iniciada há 250 milhões de anos, quando os dinossauros ainda perambulavam pelo planeta. Através da superfície porosa infiltram-se por ano 166 quilômetros cúbicos de água da chuva.
A garantia de que as precipitações continuarão a abastecer os aquíferos locais reside em um ciclo quase tão antigo quanto o planeta. Um motor que, há pelo menos 3,8 bilhões de anos, gira sem parar - essa é a primeira datação de rochas na Terra que se formaram pela ação da água no solo então incandescente. Desde aquele tempo, a radiação emitida pelo Sol levanta, na forma de vapor, enormes volumes da água dos oceanos, rios e lagos. Uma vez exposta à caldeira de pressão atmosférica, o vapor logo esfria. Então, pela ação da força da gravidade, desaba em gotas de chuva. E o milagroso sistema recomeça.
A mesma equipe de pesquisadores calculou que, de 1960 a 2009, a captação de águas subterrâneas em todo o planeta mais que dobrou, passando de 312 quilômetros cúbicos anuais para 744. No Brasil, o aumento proporcional foi ainda maior. No mesmo período, a exploração de poços artesianos subiu de apenas 7 quilômetros cúbicos para 58 - e a tendência é continuar a crescer. "Isso pode ter implicações no abastecimento humano no futuro", alerta o climatologista Carlos Nobre, secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). A boa notícia é que, no caso brasileiro, o volume é pequeno se comparado às reservas desse "oceano" escondido. As áreas favoráveis à absorção e acumulação, quase sempre rochas cristalinas sedimentares formadas há milhões de anos, ocupam a maior parte do território do país, e 90% delas têm regime de chuvas abundantes, entre mil e 3 mil milímetros por ano.
Tal condição geográfica permite que mais da metade da população se abasteça de fontes subterrâneas. Poços, nascentes e cacimbas compõem a base do fornecimento de água em 76% dos municípios do estado de São Paulo, por exemplo. No Paraná e no Rio Grande do Sul, essa porcentagem chega a 90%. Na Grande São Paulo, o maior centro urbano do país, 95% de indústrias, hospitais, hotéis e condomínios de luxo possuem poços artesianos.
Também na Amazônia, a quantidade de água sob a superfície impressiona. Não bastasse a bacia ter em seu andar térreo o maior rio do planeta, seu subsolo guarda, talvez, um dos maiores reservatórios do mundo, o aquífero Alter do Chão, espalhado pelos estados do Amazonas, Pará e Amapá. Informações preliminares dão conta de 86 mil quilômetros cúbicos, volume garantido pelo solo arenoso que favorece a infiltração da chuva. Mas os estudos irão avançar e é possível que Alter do Chão seja ainda maior.
Distante dali, a bacia sedimentar do Paraná estoca em seu subsolo 33 mil quilômetros cúbicos de água no aquífero Guarani, outra grande reserva brasileira. Compartilhado com Argentina, Paraguai e Uruguai, espalha-se por 1,2 milhão de quilômetros quadrados, com águas em média a 250 metros de profundidade, embebidas em areia e rochas sedimentares entre camadas de rochas vulcânicas, em um sanduíche natural que preserva essa riqueza desde a era Mesozoica, iniciada há 250 milhões de anos, quando os dinossauros ainda perambulavam pelo planeta. Através da superfície porosa infiltram-se por ano 166 quilômetros cúbicos de água da chuva.
A garantia de que as precipitações continuarão a abastecer os aquíferos locais reside em um ciclo quase tão antigo quanto o planeta. Um motor que, há pelo menos 3,8 bilhões de anos, gira sem parar - essa é a primeira datação de rochas na Terra que se formaram pela ação da água no solo então incandescente. Desde aquele tempo, a radiação emitida pelo Sol levanta, na forma de vapor, enormes volumes da água dos oceanos, rios e lagos. Uma vez exposta à caldeira de pressão atmosférica, o vapor logo esfria. Então, pela ação da força da gravidade, desaba em gotas de chuva. E o milagroso sistema recomeça.
É fato que a movimentação da água na hidrosfera não acontece em proporção semelhante em todos os cantos do mapa-múndi - isso varia conforme as características locais. As águas degeladas do Tibet, por exemplo, escorrem por toda a Ásia, chegam aos oceanos, evaporam-se e voltam a subir ao teto do mundo para o congelamento invernal. No subcontinente indiano, há um curto-circuito diferente: as nuvens de evaporação do mar não conseguem ultrapassar o Himalaia e tornam a despejar chuvas copiosas, gerando um clima de monções que não é lá muito agradável. O excesso ou a escassez de água são assombrosos para o ser humano.
No Brasil, onde o motor planetário parece turbinado e nunca passa completamente pela fase do gelo, o problema mais drástico tem sido o das enxurradas. Um estudo do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) sobre vítimas de deslizamentos indica 1606 mortes no país entre os anos de 1998 e 2006. "Essas estatísticas, contudo, foram aumentadas com os desastres naturais ocorridos em Santa Catarina e no Piauí em 2009; no Rio de Janeiro, Alagoas e Pernambuco em 2010; e o maior já registrado no Brasil, na região serrana fluminense, em 2011", diz Carlos Nobre. Apenas neste episódio, foram quase mil óbitos.
Os eventos recentes costumam suscitar discussões a respeito da influência do aquecimento global em tragédias metereológicas. "É difícil saber a proporção, mas já temos como certo que chuvas mais intensas são previstas para um planeta mais quente, assim como secas mais vigorosas", atesta Nobre. "E devemos nos preparar no Brasil para um aumento na temperatura entre 2 e 3 graus centígrados durante este século", acrescenta o pesquisador. A densidade pluviométrica anual do país deve, portanto, subir. Hoje, ela não encontra paralelo em nenhum outro lugar.
A cumplicidade entre as grandes extensões de mata e a rede capilar de rios é capaz de aprisionar a umidade em níveis altos até mesmo quando comparados às luxuriantes florestas equatoriais da África. Ainda assim, no Brasil, como em todo o mundo, as principais áreas de evaporação são os oceanos. A diferença é que as bacias hidrográficas, sobretudo a Amazônica e a do Paraná, criam cúpulas ou bolhas climáticas que direcionam a queda das chuvas a distâncias curtas. As massas florestais brasileiras formam um circuito fechado de águas, quase independente do padrão planetário de circulação.
A água que cai do céu encontra no solo as condições ideais de armazenamento - é pequena a extensão de terreno impróprio no país para aprisionar águas abaixo da superfície. Apenas o semiárido nordestino (menos de 10% da área territorial do Brasil) é composto de rochas cristalinas em suas entranhas. Nessa região, os rios costumam ser temporários e intermitentes, e não são reabastecidos os estoques reguladores dos aquíferos subterrâneos perto da superfície. Assim, toda a chuva, mesmo que armazenada em açudes, acaba se evaporando.
Se o Nordeste tem aquíferos mais profundos e de difícil acesso é porque eles foram enterrados há milhões de anos, quando o clima era diferente. É provável, contudo, que esses reservatórios existam, e sua exploração seja viável no futuro. "Se o petróleo pode ser buscado a quase 8 quilômetros na camada pré-sal, é claro que seria possível desenvolver tecnologia capaz de tirar proveito dessas fontes", diz Aristides Almeida Rocha. "Faria mais sentido do que promover uma obra faraônica como a transposição do rio São Francisco", acrescenta ele.
Chamada pelo governo federal de Projeto de Integração do São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional e custeada em quase 7 bilhões de reais, a transposição visa assegurar fornecimento de água para 12 milhões de habitantes de 390 municípios do sertão de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Os críticos do ousado projeto argumentam que a prioridade deveria ser a recuperação do leito do rio, muito desgastado pelo assoreamento das margens e pela instalação de grandes barragens.
No Brasil, onde o motor planetário parece turbinado e nunca passa completamente pela fase do gelo, o problema mais drástico tem sido o das enxurradas. Um estudo do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) sobre vítimas de deslizamentos indica 1606 mortes no país entre os anos de 1998 e 2006. "Essas estatísticas, contudo, foram aumentadas com os desastres naturais ocorridos em Santa Catarina e no Piauí em 2009; no Rio de Janeiro, Alagoas e Pernambuco em 2010; e o maior já registrado no Brasil, na região serrana fluminense, em 2011", diz Carlos Nobre. Apenas neste episódio, foram quase mil óbitos.
Os eventos recentes costumam suscitar discussões a respeito da influência do aquecimento global em tragédias metereológicas. "É difícil saber a proporção, mas já temos como certo que chuvas mais intensas são previstas para um planeta mais quente, assim como secas mais vigorosas", atesta Nobre. "E devemos nos preparar no Brasil para um aumento na temperatura entre 2 e 3 graus centígrados durante este século", acrescenta o pesquisador. A densidade pluviométrica anual do país deve, portanto, subir. Hoje, ela não encontra paralelo em nenhum outro lugar.
A cumplicidade entre as grandes extensões de mata e a rede capilar de rios é capaz de aprisionar a umidade em níveis altos até mesmo quando comparados às luxuriantes florestas equatoriais da África. Ainda assim, no Brasil, como em todo o mundo, as principais áreas de evaporação são os oceanos. A diferença é que as bacias hidrográficas, sobretudo a Amazônica e a do Paraná, criam cúpulas ou bolhas climáticas que direcionam a queda das chuvas a distâncias curtas. As massas florestais brasileiras formam um circuito fechado de águas, quase independente do padrão planetário de circulação.
A água que cai do céu encontra no solo as condições ideais de armazenamento - é pequena a extensão de terreno impróprio no país para aprisionar águas abaixo da superfície. Apenas o semiárido nordestino (menos de 10% da área territorial do Brasil) é composto de rochas cristalinas em suas entranhas. Nessa região, os rios costumam ser temporários e intermitentes, e não são reabastecidos os estoques reguladores dos aquíferos subterrâneos perto da superfície. Assim, toda a chuva, mesmo que armazenada em açudes, acaba se evaporando.
Se o Nordeste tem aquíferos mais profundos e de difícil acesso é porque eles foram enterrados há milhões de anos, quando o clima era diferente. É provável, contudo, que esses reservatórios existam, e sua exploração seja viável no futuro. "Se o petróleo pode ser buscado a quase 8 quilômetros na camada pré-sal, é claro que seria possível desenvolver tecnologia capaz de tirar proveito dessas fontes", diz Aristides Almeida Rocha. "Faria mais sentido do que promover uma obra faraônica como a transposição do rio São Francisco", acrescenta ele.
Chamada pelo governo federal de Projeto de Integração do São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional e custeada em quase 7 bilhões de reais, a transposição visa assegurar fornecimento de água para 12 milhões de habitantes de 390 municípios do sertão de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Os críticos do ousado projeto argumentam que a prioridade deveria ser a recuperação do leito do rio, muito desgastado pelo assoreamento das margens e pela instalação de grandes barragens.
O São Francisco é um exemplo do uso de nossas águas para a produção de energia elétrica. No Brasil, a ausência de altas montanhas e suas quedas abruptas naturais é suprida por uma fartura de torrentes de planalto e planície, que exigem a construção de diques. Ao longo da história, já foram implantadas 31 grandes barragens no Brasil. Em seus reservatórios, elas acumulam quase 1 bilhão de metros cúbicos de água.
O parque hidrelétrico brasileiro é, há décadas, um dos maiores do mundo. Quase 70% da energia elétrica do país vem dessa matriz, tida como não poluente e renovável, enquanto a média mundial é de 25% - apenas a Noruega, com quase 100%, está na frente. As barragens inundam áreas extensas, deslocam populações e alteram o clima local, mas emitem volumes bem menores de poluição atmosférica e de gases de efeito estufa que a queima de carvão ou de óleo combustível para acionar as turbinas.
Estima-se que apenas 32% do potencial nacional já foi convertido em usinas: nos dias atuais, são 403 delas em pleno funcionamento e pelo menos 316, de todos os tamanhos, em construção. Pesquisas de campo inventariaram mais de 3 mil locais em nossos rios capazes de comportar hidrelétricas, com potencial total de 243 609 megawatts - destes, 89 984 na região do Amazonas, segundo a contabilidade otimista do Plano Decenal de Expansão e do Sistema de Informações, da Eletrobras. Desse montante, 78 658 megawatts já estão sendo produzidos.
O preço das hidrelétricas inclui florestas inundadas. Como efeito do apodrecimento da madeira submergida, gases nocivos são emitidos, o que pode ser amenizado com a retirada desse material de forma sistemática, como ocorre no lago da usina Tucuruí, no Pará. A morte de animais e da vegetação também é inevitável, com prejuízo da biodiversidade, "sem contar as madeiras de lei e os sítios arqueológicos perdidos", diz Aristides Almeida Rocha. E os lagos podem facilitar a propagação de endemias, como a esquistossomose, a malária e o tracoma.
Por fim, as populações dos rios represados sentem o impacto direto. O reservatório de Sobradinho, no rio São Francisco, afetou 70 mil pessoas que viviam da agricultura de vazante, da pesca artesanal e da criação de caprinos. Boa parte dos transferidos tiveram dificuldades de adaptação. As comunidades indígenas são as que sofrem mais, como aconteceu nas usinas de Balbina, no Amazonas, com os waimiri-atroari, e Tucuruí, no Pará, com os paracanã.
O maior foco de preocupações, é claro, debruça-se sobre a Amazônia, onde o ecossistema é mais vulnerável a mudanças em larga escala. Uma nova espécie é descoberta a cada três dias pelos cientistas na floresta. Por isso mesmo, as estimativas técnicas de impacto ambiental são sempre controversas. É o caso do projeto de construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, que poderá ser a terceira maior do mundo e cuja aprovação final se arrasta ao longo de anos e cria conflitos antes mesmo de se iniciarem as obras.
Apesar da abundância dos recursos hídricos, o potencial do Brasil um dia chegará a seu limite. "A propagada fartura de água fez com que governantes e população se acostumassem a não valorizar o recurso", analisa Silvio Ferraz. Para 2030, estima-se uma população de 238 milhões de pessoas, cada vez com maior poder econômico e ávidas por energia elétrica e produtos industrializados. A equação é perversa, tendo em vista que o cenário econômico favorável prevê que, em duas décadas, o consumo de energia será maior que 1 080 terawatts - quase quatro vezes o atual potencial. Como nunca, o Brasil terá de lidar de forma mais direta com o eterno conflito entre desenvolvimento e problemas ambientais. "Com a situação se agravando, a mudança nos hábitos de consumo terá de ser radical", resume Ferraz.
O parque hidrelétrico brasileiro é, há décadas, um dos maiores do mundo. Quase 70% da energia elétrica do país vem dessa matriz, tida como não poluente e renovável, enquanto a média mundial é de 25% - apenas a Noruega, com quase 100%, está na frente. As barragens inundam áreas extensas, deslocam populações e alteram o clima local, mas emitem volumes bem menores de poluição atmosférica e de gases de efeito estufa que a queima de carvão ou de óleo combustível para acionar as turbinas.
Estima-se que apenas 32% do potencial nacional já foi convertido em usinas: nos dias atuais, são 403 delas em pleno funcionamento e pelo menos 316, de todos os tamanhos, em construção. Pesquisas de campo inventariaram mais de 3 mil locais em nossos rios capazes de comportar hidrelétricas, com potencial total de 243 609 megawatts - destes, 89 984 na região do Amazonas, segundo a contabilidade otimista do Plano Decenal de Expansão e do Sistema de Informações, da Eletrobras. Desse montante, 78 658 megawatts já estão sendo produzidos.
O preço das hidrelétricas inclui florestas inundadas. Como efeito do apodrecimento da madeira submergida, gases nocivos são emitidos, o que pode ser amenizado com a retirada desse material de forma sistemática, como ocorre no lago da usina Tucuruí, no Pará. A morte de animais e da vegetação também é inevitável, com prejuízo da biodiversidade, "sem contar as madeiras de lei e os sítios arqueológicos perdidos", diz Aristides Almeida Rocha. E os lagos podem facilitar a propagação de endemias, como a esquistossomose, a malária e o tracoma.
Por fim, as populações dos rios represados sentem o impacto direto. O reservatório de Sobradinho, no rio São Francisco, afetou 70 mil pessoas que viviam da agricultura de vazante, da pesca artesanal e da criação de caprinos. Boa parte dos transferidos tiveram dificuldades de adaptação. As comunidades indígenas são as que sofrem mais, como aconteceu nas usinas de Balbina, no Amazonas, com os waimiri-atroari, e Tucuruí, no Pará, com os paracanã.
O maior foco de preocupações, é claro, debruça-se sobre a Amazônia, onde o ecossistema é mais vulnerável a mudanças em larga escala. Uma nova espécie é descoberta a cada três dias pelos cientistas na floresta. Por isso mesmo, as estimativas técnicas de impacto ambiental são sempre controversas. É o caso do projeto de construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, que poderá ser a terceira maior do mundo e cuja aprovação final se arrasta ao longo de anos e cria conflitos antes mesmo de se iniciarem as obras.
Apesar da abundância dos recursos hídricos, o potencial do Brasil um dia chegará a seu limite. "A propagada fartura de água fez com que governantes e população se acostumassem a não valorizar o recurso", analisa Silvio Ferraz. Para 2030, estima-se uma população de 238 milhões de pessoas, cada vez com maior poder econômico e ávidas por energia elétrica e produtos industrializados. A equação é perversa, tendo em vista que o cenário econômico favorável prevê que, em duas décadas, o consumo de energia será maior que 1 080 terawatts - quase quatro vezes o atual potencial. Como nunca, o Brasil terá de lidar de forma mais direta com o eterno conflito entre desenvolvimento e problemas ambientais. "Com a situação se agravando, a mudança nos hábitos de consumo terá de ser radical", resume Ferraz.
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